sábado, 16 de janeiro de 2010

Reciclagem.

Salve, salve velha dor...
Por onde andava?
Ha quanto tempo não sentia teu calor!
Ha quanto tempo eu não a esperava?
Salve, salve bela!
Onde as lágrimas já enfim significam algo
Onde a carência enfim impera
Onde o tempo é um grande salto.
Tudo passa na velocidade da ansiedade
Tudo é saudade
Tudo é miragem
Tudo é uma incontrolável vontade...
Há e como essa vontade é insaciável
Como esse querer é ilimitado
E como a vida se torna tão apertada
Tão desprezada por aquilo que te aparta
De si mesmo.
Aquilo que ainda não é
Mas, que mesmo assim sendo, é, e como é!
Salve doença que não quero cura!
Salve paixão que me afunda!
Salve, dor, salve!
Por que é dela que se é feita a vida
Em todas as suas feridas
Abertas ou fechadas
Esquecidas ou relembradas
É disso que é feita as mágoas
E é disso que se é feito a superação
Aquilo mesmo que te dá o direito de seguir em frente
A sua oração
O seu amor descente...
Complascente e paciente
Firme, convicto que tudo dará certo
Mesmo que não acredite
Jurando martírio eterno.


Felipe Ribeiro

domingo, 3 de janeiro de 2010

Silvana.

Há alguns anos, quando eu andava mais sozinho do que ando hoje, entrei num desses bares grandes onde a primeira coisa que se consegue observar quando se entra em um lugar desses é gente, muita gente. Depois o barulho, muito barulho. Indistinguíveis sons de bandas tentando tocar bem e de pessoas querendo falar competindo com o som alto. Fui até o longo balcão e pedi um uísque com gelo. Naquela época eu tinha alguma coisa que se pode dizer ser bom gosto, ou bom senso, não me lembro, faz tempo que perdi isso. Fiquei na minha, não queria papo com ninguém. O barman, ou seja lá como chamam o cara que te serve as bebidas nestes lugares, me serve o scotch. Beberico um pouco e fico a observar as pessoas. De repente eis que eu vejo um primo meu. O típico rapaz que no auge de sua juventude não consegue controlar a sua empolgação e o seu tom de voz, o que acaba transformando-o no projeto perfeito do cara chato que não se manca. Fingi não vê-lo e me virei e fui saindo devagar com meu copo de uísque em mãos. Foi quando escutei o que não queria escutar. Em meio a centenas de pessoas por que é que ele me viu? Cristo, Buda, Krishina ou seja lá quem for, por que?!
-Primo! – Ouvi aquilo e pensei em seguir em frente e nem dar moral. Foi o que eu fiz, mas não adiantou muito. Senti sua mão pesada de jovem cheio de vida e empolgação que descobriu o que é uma xoxota não tinha nem dois meses bater nos meus ombros.
-Opa, tudo bom cara?
-E aê! – Me abraçou de lado. Caiu, como não poderia deixar de ser, um pouco do meu uísque na minha camisa. – Então, que que você ta fazendo aê sentado sozinho? Não ta vendo o tanto de gata aqui não?
-É, pois é...
-Então, eu to com uns colegas meus aê, cara já fiquei com umas três mulheres e aqui ta bom demais... – Não escutei mais nada depois disso. Liguei meu foda-se e acionei o meu vocabulário típico de quem finge escutar mas que está pouco se lixando. Soltei meus “é sério?”, “nossa!”, “que legal heim”, e coisas assim. De repente ele me acorda do meu torpor causado pela sua felicidade fútil e barulhenta batendo no meu ombro com força. Caiu mais um pouco do uísque. O que que há com a juventude de hoje, ela nunca ouviu falar na palavra “classe”?
-Mas primo, eu quero mesmo é pegar aquela morena ali! – E me aponta para uma moça que estava sentada no outro canto do balcão. Ela estava acompanhada por outra moça loira, muito bonita por sinal. Sentei no banco do balcão e bebi mais um pouco.
-Então primo, que que ce acha? Eu pego a morena e você fica com a loirinha, hã, hã?
-Vai na frente. –Realmente tenho preguiça para com pessoas animadas demais.
-Beleza! Eu falo de você para a loira então!
-Isso, vai lá, me ajuda.
-Pode deixar primo! – Ele não entendeu o “me ajuda”. Também pudera, o cara era novo, simples de coração... Mas muito chato, o que superava todas as suas qualidades. Não posso deixar de constatar que sim foi um alivio quando ele saiu. Então eu resolvi observar a situação. Por incrível que pareça meu primo conseguiu sair para dançar com a morena. O cara tinha jeito para com as mulheres... Talvez porque mulher não seja tão complicada assim, afinal. Enfim, a loira olhava para os dois. Depois ela voltou seu olhar para a batida que estava tomando pelo canudinho. Então ela levantou os grandes olhos azuis diretamente para mim. Joga os cabelos longos e loiros para o lado e sorri. Eu aceno com a cabeça e volto minha atenção ao meu uísque, ou o que sobrou dele depois do terremoto de testosterona que era meu primo. Resolvo por fim flertar com a moça voltando meus olhos novamente em direção a ela, porém não a encontrei mais ali. Procurei que nem uma toupeira mais um pouco e escutei bem do meu lado uma voz suave e risonha:
-Estou aqui Felipe. – Me viro e ela estava sentada no banco ao meu lado. Ela realmente era bonita e ao mesmo tempo segura de si, firme... Sim, firme e serena.
-Opa. – Disse eu em meio a um sorriso amarelo.
-Então, você é primo daquele cara?
-Não tenho culpa disso.
-E eu não tenho culpa de ter uma amiga daquela.
-É... – Este era um daqueles típicos momentos em que eu não sabia o que dizer. Não tinha a versatilidade dos garanhões. Acabei meu uísque e fiquei brincando com o copo.
-Posso te pagar outra dose Felipe?
-Se você quiser... –Ela sorriu e pediu outro scotch pra mim. Então me bateu uma idéia simples que até aquele momento eu havia ignorado: Qual o nome dela mesmo?
-Desculpa moça, mas qual teu nome mesmo?
-Silvana.
-Humm... Posso te chamar de serena?
-Se você quiser.
-Beleza então. – O drinque chegou e eu beberiquei de novo. Ela me olhava com os olhos de uma pessoa que estava completamente fascinada com o que via. Fiquei um pouco inibido beirando à desconfiança e disse:
-Seja lá o que o meu primo disse de mim, acredite, eu não sou isso tudo.
-Na verdade seu primo não falou muita coisa de você, só seu nome e que você estava sozinho.
-Então... – Ela sorriu e me disse:
-Você deve estar se perguntando, por quê?
-Confesso que sim.
-Digamos que te achei interessante. Você parece que quer sumir, gosto disso.
-Por quê?
-Quem não gosta de aparecer ou tem muito a esconder e não quer compartilhar com os outros ou se sente inibido com as pessoas, e eu acho isso um charme.
-É, deve ser. – Beberiquei de novo o uísque.
-Você é indiferente, metido! Se sente superior ou é só timidez?
-Nem um nem outro. Só gosto de ficar na minha.
-Então... Estou te incomodando?
-Não, você me parece legal.
-Sou sim! Você vai ver! – Nisso ela sorriu, virou e se escorou no balcão. Ela usava um vestido florido que lhe caia muito bem. Olhava o pessoal fixamente. Então ela se vira pra mim e pergunta: - Você não dança?
Me virei e vi o pessoal dançando na pista. A música eletrônica, ritmo rápido e constante, as luzes piscando, o pessoal olhando para o chão balançando as cabeças e os braços, alguns de olhos fechados com a cabeça e os braços erguidos para cima.
-Isso é dançar? – Retruquei.
-É uma coisa interna Felipe... É tipo uma pulsação que a gente sente, entende?
-Não.
Ela sorri me olhando de baixo para cima, para e olha fixamente nos meus olhos. Puta que pariu, poderia fazer tudo por ela naquele instante em que seus olhos cruzaram como uma bala com os meus. As mulheres quando querem alguma coisa de um homem ordenam com os olhos, mas uma ordem irrevogavelmente aceita pelo homem e seu instinto.
-Vamos dançar?
-Prefiro ficar conversando com você aqui, se não se importa.
-Claro! Mas...
-Mas?
-Mas você nem ta falando nada, fala aí!
-Não tenho muito que falar, o que é que eu poderia falar? – Beberiquei mais um pouco do uísque.
-Sei lá, qualquer coisa. O que sente, o que sabe?
-Não sinto e não sei de nada ultimamente. Quer dizer... só disso que sei ou sinto, porra, sei lá.
-Olha ai! Já disse alguma coisa!
-Tá legal então, sua vez agora, porque é que você não fala nada?
-Por que te observo.
-É, isso eu to vendo, mas o que você procura em mim?
-O que aparecer, ué!
-Que merda heim... – Ela gargalhou. – E o que é que apareceu pra você até agora?
-Um ser... Autentico!
-Heim?
-Você é espontâneo, seus diálogos são fluidos, não tem muitos crivos...
-Crivos no caso seria papo furado?
-Uma artificialidade imposta, conforme as leis da etiqueta e da moral e dos bons costumes...
-E porque você acha que ela tem que se impor?
-Talvez porque não seja tão inerente ao sujeito.
Ela me olhava de um jeito estranho. Desconfiei que estivesse sendo alvo de uma experiência cientifica, ou seja lá o que for, só sei que estava tendo essa impressão. Então ela me solta a seguinte frase: -O que você acha do sujeito hoje em dia? – Porra, que tipo de pergunta era aquela? Eu não achava nada, respondi apenas tendo por base tudo o que eu estava sentindo naquele momento.
-Eu acho que a maioria das pessoas estão esgotadas... Elas mesmas se esgotam pela pressão insana que elas mesmas se impõem... Acho que essa pressão é perversa porque inculca na maioria das pessoas uma culpa que elas não tinham o direito de sentir... Acho que isso é culpa dessa lógica absurda da eficácia, se você não se preparar constantemente você não sobrevive, isso pra mim é uma guerra suja porque o mundo te prepara apenas para ficar preparado para o que eles ditam, o que o mundo determina, você nunca esta preparado para você mesmo e com isso você esquece de se formar por si mesmo... Sei lá, acho que o que existe hoje de fato é a vontade de ter vontade própria, entendeu?
-Sim! Mas de onde vem essa historia de vontade?
-Vem da humilhação.
-Hã? Como assim?
-A todo momento nos humilhamos. Com isso matamos a golpes de pancadas a nossa própria vontade. Não fazemos por vontade própria determinadas coisas, fazemos porque é determinado que façamos, caso queiramos sobreviver “dignamente”. Compreende? Somos assediados moralmente a todo instante. E o pior de tudo é que nos resignamos porque naturalizamos o mundo dessa forma, mas esquecemos que somos nós quem fazemos ele ser assim.
-Entendo. E o mundo se acomoda, presencia barbáries e fica imune e mudo.
-De que mundo estamos falando afinal de contas?
-Acho que é aquilo que imaginamos como mundo, que achamos que esta além de nossos pensamentos... O que conseguimos imaginar, o não imaginável está fora desse mundico... Não é o mundo das possibilidades, é só o restrito, entende?
-Sei... A questão é: Achamos que de fato pensamos ou pensamos de fato? Pode uma cultura desenvolver um mecanismo de abstração tão violento que de fato nos inflija a pensar que pensamos ao invés do livre exercício de pensar por conta própria?
-Acho que pensamos sim Felipe... Pensamos sim, de fato, mas de uma maneira, eu diria, bitolada...
-Sabe moça – bebi mais um pouco do uísque – o homem de hoje esta engajado em seus projetos porque ele enxerga a vida não como uma possibilidade, mas antes vê a vida com a angustia daquele que joga... e que joga pra vencer.
-Entendi.
-E se tudo é um jogo, não há um compromisso para com os outros jogadores, já que esses são vistos como concorrentes e adversários.
-Mas haveria vencedores? Perdedores? Não sabem que pode haver uma filosofia ganha-ganha?
-Acho que... Acho que haveria aqueles que ganham rodadas... Mas tudo depende de como a pessoa vê a sua vida...
-Não sei... Não estou ciente se jogo ou não... Às vezes devo jogar, para que, eu ainda não sei... Garçom me vê outra batida, por favor...
-O bom jogador é aquele que sabe parar para ter controle do jogo, e não o contrário. Há de se ter a tal da serenidade, temos que ter consciência do que somos... A maioria dos seres humanos não tem consciência do que são, ou melhor, da sua situação... Situação de dependência.
-Sim, dependência total! A maioria da humanidade ainda quer ter controle sobre a natureza e o mundo, não dão trégua.
-Aqui sua batida moça. – disse o garçom.
-Obrigada. – chupou um pouco no canudinho e continuou – sabe, eu estudei a teoria do demônio de Laplace e as pessoas ainda pensam dessa maneira, pelo menos os latino americanos – disse-me olhando para a pista de dança.
-No fundo é isso que todos querem: Poder. O poder nos garante de certa maneira e nos faz esquecer da nossa situação fundamental de dependência. Por isso acredito que os humildes estão a salvo de si mesmos.
-Os humildes? Agora não entendi.
-É porra. Humildes são aqueles que se conhecem e sabem pelo que lutar; os coerentes e os que não se enganam sobre si mesmos. Tendemos a pensar que os humildes são passivos, isso pra mim é ressonância da racionalidade competitiva. Em uma palavra serena, os humildes são os sinceros e honestos... Isso não quer dizer necessariamente que eles são bons ou maus, depende daqueles que são afetados pelo tapa da realidade sobre si mesmos, entendeu?
-Entendi.
-Qual das mascaras queremos usar?
-A da mesquinhez! – Sugou mais um pouco da batida do canudinho.
-Sabe o que me mata? O pedantismo. Porra pensa comigo, porque não respeitar para ser respeitado? Porque não considerar alguém como um elemento que carrega uma gama de inteligência e capacidade? E história... Experiência de vida, visões de mundo...
-Por que não se enxergam as possibilidades...
-É, pode ser. Estamos cegos pelo preconceito que carregamos e que alimentamos em nós mesmos quando achamos que somos mais só porque temos mais estudo, mais dinheiro, mais beleza. Somos extremamente quantitativistas e nem percebemos.
-É uma analise boa, mas você não acha que ela é possibilitada pelo momento de mutação do mundo? Eu acredito que o mundo vai girar ou hecatombe ou um planeta melhor! Porra, há tanto assassinato por ai, vamos todos morrer?
-Claro que vamos morrer, caralho! Não somos imortais, pô!
-Desculpe...
Nesse ponto eu percebi a cagada, fiquei nervoso não sei por que, talvez por estar a vontade demais com ela e daí eu me permitir explodir um pouco... Tentei consertar.
-Olha moça... Eu não sei de nada. Só sei que estou cansado... Sou um paralitico que se apóia em muletas de pensamentos, mais um que não anda com as próprias pernas...
-E quem não é? Olha, adorei construir esse dialogo com você!
-E o que é que você construiu?
-Ué, o dialogo!- Chupou de novo o canudinho.
-Pensei que você iria dizer algo do tipo... algo inacabado e que um dia hei de destruir, ou coisa parecida...
-Errou, não sou tão previsível!
-É, ta... O que você faz da vida moça?
-Faço psicologia, formo esse ano. E você?
-Faço história.
-Interessante!
-É... – Foi então que meu instinto me deu um chute no saco me lembrando do que um homem faz com uma mulher...
-Escuta – continuei- ta afim de ficar comigo?
-Nem um pouco.
Não contive a gargalhada.
-Tudo bem então... – beberiquei mais um pouco do uísque. Acabou o uísque e o assunto.
-Você desiste fácil assim?
-É...
Nisso chegou meu primo acompanhado pela amiga da Silvana. Ela chamou a Silvana para um canto e ficaram conversando e rindo. Meu primo sem classe e cheio de hormônio masculino me bate no ombro com sua mão pesada de euforismo.
-Primo! Que mulher!
-Ah é? – Sim, liguei meu foda-se. Na verdade já o havia ligado quando ele estava a caminho de torrar o meu saco.
-É! Demais! Ela valeu por cinco!
Foi como se eu levasse um soco no estomago. Me deu vontade de quebrar o copo de uísque na cara do desgraçado depois que ele soltou essa. Novamente sinto um tapa pesado no ombro.
-E aê primo, pegou a loirinha?
-Não.
-Porra, perae! Vocês ficaram só conversando? – Para o meu primo mulher não tinha cérebro... Só um buraco para se enfiar o pau.
-Pois é... Ela tem um papo legal...
-Tá fraco heim primo, ta fraco!
-É pois é...
A Silvana e sua amiga vieram até nos de novo. Disseram que tinham que ir embora porque estava tarde e aquelas coisas todas. Me despedi com um aceno de cabeça para a Silvana. Ela veio, me abraçou e me beijou a bochecha. Percebi que meu primo estava agarrando e beijando na boca a amiga da Silvana. Ele prometeu ligar pra ela. Elas foram embora. Sim, a Silvana não pagou meu uísque. Meu primo voltou à pista para, segundo o que ele mesmo me disse, “caçar outra gata”. Paguei minhas bebidas e voltei para casa. Novamente a pé, e novamente tive insônia.


Felipe Ribeiro