sexta-feira, 10 de julho de 2009

Amanda

Então tinha aquela velha vizinha que eu conhecia tão bem quanto a minha mãe. Essa vizinha, por sua vez, tinha uma filha linda que trabalhava o dia inteiro e que, por sua vez, tinha uma filhinha de seus 5 anos de idade que, por sua vez, passava o dia todo na creche ou escolinha ou hotel escola, enfim, porra, não sei o nome mais disso. A avó trabalhava de doméstica numa casa de madame longe da cidade e também passava e lavava roupas de estudantes vagabundos de república. Nesse dia em particular ela estava com mais de cinquenta quilos de roupas pra passar e por esta razão me pediu pra ir buscar sua netinha, de nome Amanda, na creche ou escolinha ou hotel escola naquele dia. Não era a primeira vez que eu buscava a menina lá naquele antro de meninos catarentos e barulhentos, de modo que eu já era conhecido pelas professoras. A Amanda, naquela época, era a única criança que eu conhecia. Não, talvez ela fosse a única criança que me conhecia de verdade, e só por isso eu gostava dela, de verdade. Bom, enfim, quando cheguei no local as crianças já estavam saindo e se juntando a seus respectivos pais.
- Vim buscar a Amanda. - Disse para uma professora gorda e com cara de cansada.
- Ah sim, um minuto. - Me respondeu com um suspiro, como se tivesse corrido uma maratona.
Aquele barulho todo insuportável de crianças rindo, gritando e algumas chorando me fez ter por alguns instantes nauseas. Aquele cheiro de giz de cera, massinha de modelar e alcool do mimiografo me fez lembrar da minha infância.
-Tio Xelipe! - Gritou a Amanda que veio correndo em minha direção arrastando sua mochila de rodas. Ela estava gripada e por isso mesmo falava tudo mais errado do que de costume. Me deu um abraço que envolveu minhas coxas e não queria mais se desgrudar.
-Olha, ela tem dever de matemática pra fazer, fala pra avó dela. - Disse a professora.
-Pode deixar.
-Cadê vovó Dinha? - Perguntou a menina.
-Tá trabalhando, agora desgruda pra eu poder te levar pra casa.
Ela me deu a mão e fomos andando. Ela andava muito devagar e a todo o momento me pedia para carrega-la no colo. A inssistência foi tanta que sugeri sentarmos na calçada um pouco pra que ela pudesse descansar. Sentamos na calçada, ela tirou as sandálias e ficou jogando pedras no meio da rua. Aproveitei pra deitar na calçada e curtir um pouco a sombra da árvore em que estávamos embaixo. Ela parou de jogar as pedras e se deitou ao meu lado e ficou lá me fitando até me deixar sem graça. Por fim ela me obrigou a perguntar:
-Que que ce tanto olha menina?
-Seu naliz. É bremeião!
Sim, claro, depois de ter passado a tarde toda bebendo uma garrafa de tinto meu nariz fica um pouco vermelho mesmo.
-Tá... E o que que tem ele assim?
-Palece um paiaço! Ce é paiaço?
Sim, ela era honesta, ainda tinha o compromisso com o que sentia, com o que via, e não fazia menssura de não compartilhar isso com os outros... Quando é que isso acaba nas pessoas?
-Ahahahahaha! Boa! Sou sim princesa...
-Então puque você não sorri?
-Porra, como assim? Não acabei de rir?
-Mas ce não faiz ri! Que cicu você é?
-O circo que eu trabalhava fechou.
-E ce já plocurou otô cicu?
-Não, ainda não.
-AATCHIN!
-Deus te crie princesa...
-Ameín!
-Já descansou né? Vamo bora então!
-Ah não! Num quelo i pra casa!- Dizia isso enquanto calçava suas sandálias.
-Que bobagem é essa agora?
-A vovó semple me pegunta se eu tenho deve di casa. Aí eu tenho que fazê!
Sim... Ela ainda tinha inocência, ainda era dura de caráter, não sabia mentir... Quando é que isso acaba nas pessoas? A avó trabalhava o tempo todo na cozinha passando as roupas, e quando a menina tinha dever pra fazer ficava muito mais fácil vigiá-la. Isso era uma tortura pra pequena que gostava de brincar o dia inteiro com seu cachorro.
-Me mostra o dever de matemática ai vai...
Ela buscou o caderno de matemática dentro da mochila de rodas e me entregou. Nada de mais, mesmo para mim que não sabia muita coisa de matemática ou de algo exato no mundo. Podia fazer aquilo tudo em 5 minutos. Foi daí que tive uma idéia.
-Vem comigo Amanda.
-Onde qui a gente vai?
Estava levando ela num pequeno armazém que tinha numa esquina perto de casa. Chegando lá me sentei na calçada e entreguei 5 reais para a Amanda gastar com o que ela quisesse lá dentro. Fiquei esperando ela do lado de fora com seu dever de matemática em mãos. Fiz todo o dever. Ela voltou com dois pacotes de salgadinho e um saco de papel lotado de balas. Me entregou um dos pacotes e eu devolvi pra ela. Sim, ela ainda tinha decência de se lembrar dos outros... Quando é que isso acaba nas pessoas?
Entreguei o caderno com o dever de matemática pra ela. Ela guardou e nem desconfiou de nada. Sim, ela era pura, quando é que isso acaba nas pessoas? Fomos embora pra sua casa e sua avó já estava maluca atrás da gente.
-Oceis que me mata! -Disse a velha aliviada por nos ver.
-Calma dona Dinha, tava dando uns agrado pra menina.
-Ela vai fica mal acostumada com isso! É por isso que ela gosta do cê, ce vive comprando essas bestera pra ela come!
-Tá bom, tá bom...
-Tem dever hoje? - A velha me perguntou.
-Tem de matemática. -Respondi.
A menina soltou um suspiro enquanto descascava uma das balas. Despedi da velha e Amanda me abraçou. Falei pra ela ir brincar com o cachorro dela. Ela disse, relutante, que tinha dever pra fazer. Quando é que o medo quebra a vontade? Não disse a ela que tinha feito o seu dever. Queria que ela tivesse uma surpresa. E teve, claro que teve, pois naquela mesma tarde, enquanto eu estava sentado na calçada esperando qualquer coisa eu a vi brincar na garagem de sua casa com o seu cachorro. Ela me olhou e me deu um tchau com as mãos. Eu dei outro e ela continuou a brincar com o cachorro.


Felipe Ribeiro

Um comentário:

Dinah Faria disse...

Sim meu caro Frank.. tantas coisas se perdem com o chegar da idade. Pq se perdem? Tornar-se humano é envelhecer e aprender ou ser tão puro quanto a menina? Talvez envelheçamos e o ato de aprender torna-se o ato de desaprender. Sei lá. Talvez não saibamos o que somos (ou o que nos tornamos), como sabíamos aos 5 anos. Lamentável? Real? Não sei...