Noite. Obviamente eu estava andando pelas ruas do centro da cidade e, obviamente, estava com fome. Como de praxis escolhi um boteco de esquina, todo fodido de velho e que cheirava a coisa ultrapassada, estagnada, doentia e um tanto quanto maléfica. Antes de chegar ao estabelecimento porém, fui abordado por um ciclista (mais conhecido como bicicleteiro aqui aonde moro) que me pediu com toda a educação:
-Tem fogo maluco?
-Não.
Diante de tal diálogo automatizado eu continuei andando em frente rumo ao tal buteco. Ao avistar o tal buteco percebi que o ciclista escolhera o mesmo estabelecimento para pedir fogo. Afinal, ele tinha bom gosto, pensei. Esse boteco ficava bem na frente de um bar de esquina, aquilo que hoje em dia costumam chamar de point do momento, e que vivia cheio de gente. Por essa razão em especifico entrei no boteco fodido. Dentro dele haviam quatro pessoas. Um cara no balcão que bebia uma cerveja vestindo um uniforme de alguma empresa de transportes; dois sujeitos sentados numa mesa escondida bem ao lado do freezer das cervejas, os tipicos sujeitos soturnos que não se podia olhar demais; o ciclista que a essa altura estava chegando no balcão e o balconista que, certamente, era o dono daquela espelunca. O cara parecia uma múmia. Muito velho, com dentes cavalares faltando e amarelados, muito magro, branco e com a pele toda rugosa. Seus cabelos eram ralos e brancos. Tinha-se a impressão de que ele poderia soltar pó a cada movimento. Cheguei faminto, entrei e a primeira coisa que procurei foi a estufa para saber o que é que se vendia para comer ali. Me deparei com uma coxinha triste e solitária, duas maias uma em cima da outra e um quibe tão solitário quanto a coxinha. Sentei num banco em frente ao balcão e o balconista estava falando com o ciclista:
-Você vai comprar?
-Vou.
Diante disso o velho balconista agaixou-se e pegou um embrulho de papel quadrado contendo muitas caixas de fósforo. Pegou uma das caixas e entregou ao ciclista. Este por sua vez abriu a caixa e ascendeu um fósforo tentando a todo custo ascender um cigarro que estava praticamente no quimba. Ao fazer isso pegou a caixa de fósforo e colocou em cima do balcão e saiu do estabelecimento. A fúria da múmia atrás do balcão foi gigantesca.
-Como é que você faz uma coisa dessas comigo?! Comigo! Você falou que ia comprar o fósforo!
O ciclista porém já estava do lado de fora do boteco, já montando em sua bicicleta. Olhou pra dentro e disse:
-Ce viaja demais maluco!
O velho ficou mais furioso ainda, saiu de trás do balcão e xingou abertamente o ciclista.
-Seu filho de uma puta! Sua cobra! Como você faz isso comigo!
E virando-se para mim perguntou:
-Você viu não é? Você viu o que aquele desgraçado fez!
-Sim, gastou um fósforo...
-Exatamente! Desgraçado, disse que ia comprar uma caixa!
Aquilo era demais para mim. Mas a fome estava me apertando. Pedi logo uma maia e um refigerante pequeno. O velho ao ouvir a palavra refrigerante deu uma risada e falou entre dentes balançando a cabeça negativamente "refrigerante, tsc". Pegou a maia com um pegador engordurado e colocou num microondas escondido atras de uma pilastra.
-Desgraçado, disse que ia comprar, desgraçado!
Repetia isso consigo mesmo. O pessoal que ali estava nem deu moral para aquilo tudo. Os dois rapazes soturnos continuavam a beber sua cerveja e a falar baixo um com o outro; o cara vestindo o uniforme fixara sua atenção na pequena televisão pendurada na parede em frente ao balcão. O programa, é claro, era esportivo e falava a respeito do jogo do Corinthians e Grêmio. Soltei um suspiro e o velho me trouxe a guaraná e logo em seguida, depois de um apito do microondas, me trouxe a pequena maia esquentada. Na primeira mordida vi que ela estava seca, murcha e com um gosto horrivel de velharia. Deveria estar ali no minimo três dias. De qualquer maneira comi aquilo tudo. Paguei o velho que ainda balançava negativamente a cabeça por causa de um fósforo roubado. "Ele disse que ia comprar, você viu!", repetiu isso esperando alguma palavra de consolo de minha parte. Olhei bem para o velho. Ele não merecia um pingo de respeito. Ele estava transtornado por causa de um fósforo. Segurei minha mão para não socá-lo bem no meio da cara, só Deus sabe o quanto segurei. Sai de lá sem dizer nada, apenas um obrigado. Ele teve a cara de pau de ainda me abençoar com um "vai com Deus". Aquilo foi demais pra mim. Voltei e me virei, mas o velho estava conversando com o cara do uniforme:
-Você viu que filho da puta?
-Me traz outra cerveja.
-Um desgraçado desses me roubou, me roubou!
Fui tomado por uma misericórdia que beirava ao enjoo. Tive que sair dali e sem olhar para trás andei pelas ruas do centro da cidade, sentei-me num banco de praça e fiquei por ali imaginando se alguém iria ainda me aporrinhar e pedir aprovação pelas pequenas injustiças que o mundo poderia acometer e que seria terrível demais para o orgulho esquecer.
Felipe Ribeiro
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
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Um comentário:
Orgulho demais, por vezes me cansa... ando cansada!
;*
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