sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Carta antiga.

Achei, em meio a bagunça antiga de meu quarto, uma carta endereçada a um amigo de longa data. Na época trocávamos algumas cartas, mas acabamos por concordar que a conversa cara a cara e, se possível, acompanhada por uma bela cerveja, seria mais interessante. Em todo o caso, como não tinha nada em vista para escrever por aqui, irei publicar a carta neste blog.

"Meu caro amigo. Diante de seus questionamentos e surpresas ficou latente em mim a urgência de uma tomada de consciência que antes estava adormecida ou, quem sabe, domesticada a tal ponto que não pude notar certas coisas que me aconteciam a todo o momento. De fato estamos cercados por violência e ela é habitualmente alimentada por um medo ideológico que fora moldado de tal forma a nos parecer conveniente a ponto de chegarmos a ver todas as casas com portões e muros reforçados numa espécie de auto-cárcere privado que garantiria a segurança dentro do inferno conscientemente posto ai para alimentar todo nosso medo.
Engraçado notar que a violência é sempre posta no outro, nunca nos vemos como o agente da violência em si e isso acaba de certa maneira legitimando a própria violência. Ela parece sempre estar em agentes pré-determinados pelo nosso medo que molda o agente legítimo que carregaria todo o mal em potencial, o bandido. Não quero entrar em detalhes psicologizantes mas só quero me ater ao seguinte: Qual é nossa responsabilidade social se hoje tudo o que vemos é uma gradual cultura de isolamento, haja visto por exemplo o fechamento total das casas, seus pequenos feudos ou reinos que são constantemente protegidos porque constantemente ameaçados?
Desde que me enviou aquela carta acabei notando a grande contradição no discurso considerado democrático; aquele mesmo discurso que promete o paraíso na Terra e que vemos geralmente nas propagandas de carros, cerveja e nos programas governamentais de programas sociais que prometem trazer o tal do progresso e com ele a tal da paz. Acredito que a contradição esteja justamente ai: Porque será que a paz é sempre um projeto futuro, sempre é condição e nunca uma regra? Isso realmente me faz pensar se o nosso medo é simplesmente expontâneo ou planejado. 
Já parou para pensar em quantos ilustres inimigos desconhecidos nós selecionamos para nós mesmos? Isso não seria uma forma de banalizar a violência, no sentido de torná-la naturalizada ao ponto de chegarmos mesmo a temer e a criar "alvos privilegiados" que merecem toda a nossa fúria legitimando assim toda nossa idiotice e violência como sendo a mais justa e a mais virtuosa? A justiça não seria uma forma de vingança institucionalizada que garantiria o status quo? Não estaríamos comprando um discurso que nem nos pertence? 
Acredito que toda a promessa de paz ancorada nesse tipo de discurso é uma forma de se manter privilégios e, ao mesmo tempo, uma forma segura e imperceptível de alimentar o medo e a violência, já que nos consideramos alvos centrais em potencial ameaça, acarretando assim uma histeria controlada e interiorizada.
Cada vez mais vejo que a emoção que o medo causa pode ser instrumentalizada como arma política; isso porque ele cria lugares comuns para a legitimação da violência. O medo faz com que sejamos mais crédulos, que aceitemos a primeira via de proteção que aparecer transformando-nos em jogadores atentos e passivos a chantagens políticas como por exemplo o risco real de sermos servos voluntários e instrumentos de sujeição, haja visto que quem tem medo não é livre para saber, escolher e construir por si mesmo a via que melhor manifestará a sua plena convicção.
Isso de certa forma me lembra a tese de Espinosa sobre Deus. Ao contrário de Descartes, que ainda via Deus como o grande arquiteto do universo, Espinosa via Deus como uma força que se manifestava na natureza e, todavia, em nós mesmos. Deus é uma potência segundo sua tese; uma força criadora e nós somos efeitos desse potencial criador e, ao mesmo tempo, temos essa potência criadora em nós, mas limitado pela própria lei natural. Eticamente falando essa potência criadora se chama alegria. Tudo que se liga a alegria é passível de criação, de transformação e, consequentemente, tudo que se liga a tristeza, como nossos medos, é passível de passividade que não cria e que só aceita justamente porque o medo tira a vontade de criar e de se transformar.
Veja então o poder do medo meu caro! Veja como ele pode ser um instrumento poderoso de vigia, punição e disciplinarização! O terror propagado inconscientemente em nós pela promessa de nossa paz ainda não adquirida tende a aniquilar a nossa singularidade, não nos dá o espaço necessário de uma construção crítica fundamentada em uma lógica despregada da lógica do medo que é alimentada constantemente; esse mesmo medo que nos fascina e que nos impede de nos fascinar por coisas mais amenas como a simples alegria das coisas simples que estão a nossa volta e que nos prometem apenas a felicidade momentânea, e nada mais. E por que quereríamos mais?
Um abraço fraterno, de seu amigo Felipe Ribeiro."


Felipe Ribeiro

Um comentário:

Velharia disse...

Pensamentos certeiros e universais, numa estrutura de texto simples e necessária. Hoje você escreve, amanhã seus textos escreverão alem de ti. São formas literárias que mestres fazem, mas não vão saber em vida que o fizeram. Não espere gratidão de leitores de 2013, mas minha filha lerá tal trabalho com todo o prazer de um bom livro. Melhore em outros textos pois este já está suficiente bom e pronto. Parabens e tudo de bom nessa vida.